DEIXA QUE DIGAM

DEIXA QUE DIGAM

23/09/2018 5 Por Marcelo Pantoja

Escrito em 27/01/2018

 

É muito difícil envelhecer sem acumular um monte de preconceitos, no sentido mesmo da palavra (“conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; ideia preconcebida”)[1]. É um exercício árduo, quase antinatural com o passar dos anos, dispor-se a conhecer, ouvir, antes de opinar-julgar-rotular-rejeitar.

 

Quando um preconceito é superado se faz justiça: ou se critica-rejeita com razão e conhecimento de causa, ou se acolhe-aprende algo bom, prazeroso, às vezes sensacional, que o preconceito nos impediria de conhecer-gozar.

 

Jair Rodrigues, ainda bem, não deu chance para o preconceito e, já idoso, se fez parceiro de um rapper(!) com quem dividiu um de seus maiores sucessos, Deixa Isso Pra Lá[2]. E ficou show de bola!

 

 

 

 

Tudo bem que a música já era um rap, mas ninguém sabia disto quando o Jair resolveu cantá-la daquele jeito nos anos 1960, muito antes do rap ser inventado.

 

Resolvi escrever sobre o preconceito porque tenho sido imensamente criticado por assumir que em 2017, aqui em casa, quem bombou foi Anita. Sim, ousei conhecê-la mais a fundo antes de sair criticando, e não consigo mais parar de ouvir. Aos 50 anos me apaixonei pela música, pela história e pelo talento inconfundível de Anita.

 

Meus amigos não se conformam com isto, dizem que estou louco. Deixa que digam.

 

Desafio qualquer um a fazer o que fiz – despir-se de qualquer preconceito, conhecer a música de Anita – e duvido que não vá sucumbir, babando.

 

Pouquíssima gente neste mundo dançou como ela. Ninguém canta como ela que, sem nunca ter estudado música, tem um conhecimento profundo de seu ofício, um domínio completo, a ponto de exercê-lo de um modo tão original e único que qualquer um que ouve logo reconhece: é Anita!

 

Sem falar em sua história de vida. Pobre-pobre-pobre de marré deci, fugiu de casa adolescente para ganhar alguns trocados participando de concursos de dança. Venceu vários até descobrir que sabia cantar, e desde então não parou mais, a não ser nos períodos em que esteve presa ou internada por conta do vício em álcool e heroína.

 

Só quem não se dispõe a conhecer Anita pode colocar em dúvida o talento e a maravilha que é o seu jeito único de cantar, atrasando e acelerando o fraseado, desafiando a melodia, regendo os seus músicos com senso rítmico de uma virtuose. E que repertório!

 

 

 

A maior cantora de Jazz que já existiu. Sim, com todo o respeito às demais deusas Billie Holiday, Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald, Anita só não é assim reconhecida porque, decididamente, não dava a mínima para o marketing. Porra-louca na vida pessoal, no ofício de cantar não fazia concessões e era extremamente exigente com seus músicos. Cantou pelo mundo afora (Brasil inclusive) e se apresentou nas principais casas de espetáculo, mas seu dia-a-dia era mesmo nos pequenos clubes de Jazz, acompanhada de um quarteto ou quinteto de primeira, tirando o fôlego de pequenas e privilegiadas plateias com seu dom inigualável. Fez isto até quase o fim da vida, aos 87 anos de idade.

 

Cantava por e com prazer. Não ganhou dinheiro. Nunca foi um símbolo sexual, mas encantou o mundo com sua graça ao aparecer no Newport Jazz Festival de 1958, filmada no premiadíssimo Jazz on a Summer’s Day.[3]

 

Anita O’Day. A Gostosa, aqui, é a música.

 

 

 

 

[1] In Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 4ª. Edição, Ed. Positivo, 2008, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

[2] Max de Castro, Simoninha, Rodrigo Ramos, Rappin Hood e Jair Rodrigues, “Deixa Isso Pra Lá” (Alberto Paz/Edson Menezes) in “Festa Para Um Rei Negro”, 2009.

[3] Documentário/curta metragem de Bert Stern, 1959, New Yorker’s Films.