SR. TEMPO

SR. TEMPO

15/02/2020 4 Por Marcelo Pantoja

Escrito em 10/02/2020.

 

 

Preste atenção nesta música de 1983:[1]

 

 

 

 

Tim Maia era homofóbico?

 

Se você fuçar na Internet vai ver que tem uma turma que diz que sim, ele era homofóbico, machista, e ainda por cima batia em mulher. Já os fãs mais radicais dizem que  quem pensa assim é ignorante e não percebeu que a letra era uma crítica à sociedade hipócrita que tolerava “tudo” (maracutaias, etc) mas não aceitava o homossexualismo, ou seja, valia tudo, menos isso. E outros, mais próximos do Tim, dizem que “Vale Tudo” era só uma grande brincadeira que ele inventou.

 

Vai saber. O fato é que, brincadeira ou não, hoje em dia ninguém se atreveria a lançar uma música dizendo que não vale dançar homem com o homem nem mulher com mulher.

 

Que dizer do famoso “Rock das Aranha” do Raul Seixas, que quarenta anos atrás se propunha a ensinar que o “certo” era “cobra com aranha”?[2] Hoje ele seria massacrado.

 

Acho que atualmente nem mesmo um grupo punk (isto ainda existe?) gravaria uma música enaltecendo o ato de furar o sinal vermelho, andar a 120 por hora em pleno trecho urbano, e até usar pneus carecas! Mas  no início dos anos 60 isto aqui fazia o maior sucesso:[3]

 

 

 

 

Tem coisa muito pior. O ultracultuado Noel Rosa compôs uma música que dizia, entre outras coisas: “Mas que mulher indigesta/ Merece um tijolo na testa” !!![4]

 

Acredite, no mesmo disco em que lançou Super-Homem (uma ode à “porção mulher” de todo homem), Gilberto Gil gravou uma música com estes versos: “Minha nega na janela/ Diz que está tirando linha / Êta nega tu é feia / Que parece macaquinha / Olhei pra ela e disse / Vai já pra cozinha / Dei um murro nela / E joguei ela dentro da pia / Quem foi que disse / Que essa nega não cabia?”[5]

 

É mole?

 

Mais: Por décadas a negríssima Elza Soares cantou “Mulata Assanhada”, composta pelo também negro Ataulfo Alves, gritando aos quatro cantos “que bom seria se voltasse a escravidão”?[6]

 

Não acho que Tim Maia e Raul Seixas eram homofóbicos, que Gilberto Gil pregasse a violência doméstica, ou que Elza Soares e Ataulfo Alves fossem racistas. As músicas citadas simplesmente refletiam um tempo em que essas coisas – infelizmente – eram toleradas ou consideradas normais.

 

Parafraseando os Stones, ainda bem que o Tempo está do nosso lado.[7] Pode demorar, mas uma hora ele chega para corrigir as aberrações e tornar inaceitável o que, no passado, era “normal”.

 

Longe de mim o comportamento de uma turminha sem noção que quer, por exemplo, reescrever a obra de Monteiro Lobato (por causa de expressões tidas como racistas em referência à eterna Tia Nastácia).

 

As músicas, mesmo as preconceituosas, não podem nem devem ser apagadas da história, elas precisam ser entendidas no contexto de sua época.

 

O importante é que Tempo, este Senhor, faça a sua parte.[8]

 

 

 

 

Mesmo me sentindo, às vezes, deslocado no mundo de hoje, reconheço que o Tempo é um grande justiceiro que, no seu ritmo inalterável, vem colocar as coisas no seu devido lugar.

 

Com o Tempo, tudo melhora.

 

Ou não!

 

Hoje em dia, do bebê ao vovô, todo mundo conhece e reconhece a Anitta fucafucabundabunda e suas profundíssimas canções, e ninguém tem ideia de quem foi Anita O’Day, a maior Song Stylist que já existiu.[9]

 

 


 

[1] Tim Maia, “Vale Tudo” (Tim Maia) in Tim Maia Ao Vivo, 1992.

[2] “Soltei a cobra e ela foi direto / Foi pro meio das aranha pra mostrar como é que é certo / Cobra com aranha é que dá pé / Aranha com aranha sempre deu em jacaré” – “Rock das Aranha” de Raul Seixas, no álbum Abre-te Sésamo de 1980.

[3] Ronnie Cord, “Rua Augusta” (Hervé Cordovil) in Rua Augusta (compacto) de 1964.

[4] “Mulher Indigesta”, de Noel Rosa, no álbum Coisas Nossas de 1999.

[5] “Minha Nega Na Janela”, de Germano Mathias e Doca, no álbum Realce de Gilberto Gil, 1979.

[6] “Mulata Assanhada”, de Ataulfo Alves, no álbum (compilação) Meus Momentos de Elza Soares, 1994.

[7] “Time Is On My Side”, de Norman Meade, no álbum dos Rolling Stones (ao vivo) Still Life, de 1982.

[8] Djavan, “Oração ao Tempo” (Caetano Veloso) in Ária Ao Vivo, 2011.

[9] Anita O’Day, “Fly Me To The Moon” (Bart Howard) in Coleção Folha Lendas do Jazz Vol. 17, 2008.