O PAVÃO, A RÃ E O LEÃO

O PAVÃO, A RÃ E O LEÃO

16/06/2019 6 Por Marcelo Pantoja

Escrito em 16/06/2019.

 

Não se deixe enganar pelo título, este texto não é uma fábula com moral da história e coisa e tal.

 

O caso é que fui dormir com uma música na cabeça e acordei intrigado. Afinal, pavão voa?

 

No YouTube vocês até vão encontrar uns filminhos com pavão voando, de aparência bem fake, cá entre nós. Ou alguns que parecem mais verdadeiros, mas não mostram exatamente voos exuberantes, e sim saltos parecidos com os da galinha.

 

Após exaustivo trabalho de pesquisa descobri que pavão voa sim, mas só desse jeito agalinhado mesmo, nada de que possa se orgulhar muito. Segundo diversas fontes, dentre elas o site da Fundação Oswaldo Cruz, o pavão “só consegue voar depois de correr uma determinada distância… seu voo é barulhento e desajeitado[1].

 

Bem diferente do que a famosa música do Ednardo dá a entender:[2]

 

 

 

 

A música enaltece o “voar” do pavão, que está longe de ser a sua característica mais marcante. O pavão é famoso, muito mais, pela sua cauda.

 

A propósito, vejam como é contraditória esta informação da Wikipedia: “… exibem um complicado ritual de acasalamento, no qual a cauda extravagante do macho teria um papel principal… as características da cauda colorida, que chega a ter dois metros de comprimento e pode ser aberta como um leque, não têm qualquer utilidade cotidiana para o animal e seriam um exemplo de seleção sexual…”[3] Pô, o que poderia ser mais útil na vida de um pavão?

 

O Ednardo, então, vem nos induzindo a erro há algumas décadas. O grande talento do pavão é mesmo se exibir, daí o verbo pavonear que, conforme o Aurélio, significa “caminhar com ares soberbos… mostrar-se, exibir-se com vaidade” [4] – tipo assim, Ministro do STF.

 

Pela música brasileira também desfila há décadas aquela coisinha de “pele lisa e brilhante de longas pernas”[5] que, assim descrita, pode até deixar alguém excitado, mas na verdade estou falando é de uma rã.

 

A Rã é uma música consagrada de João Donato, conhecida e tocada no mundo todo, especialmente pela turma do jazz. Tem letra do Caetano Veloso, e é difícil entender por que o título da canção é este, já que a é apenas a última palavra do último verso, e não parece ter muita conexão com o restante.

 

Acho que a foi colocada ali, no final, só para rimar com a claridade da manhã. A letra toda é bem peculiar, com expressões que só fazem sentido mesmo para um poeta, vejam::  “Coro de cor / Sombra de som de cor / De mal me quer / De mal me quer de bem / De bem me diz / De me dizendo assim / Serei feliz / Serei feliz de flor / De flor em flor / De samba em samba em som / De vai e vem / De verde verde ver / Pé de capim / Bico de pena pio / De bem te vi / Amanhecendo sim /  Perto de mim / Perto da claridade / Da manhã / A grama a lama tudo/ É minha irmã /A rama o sapo o salto / De uma rã”

 

Pode não fazer sentido para nós, pobres mortais sem talento, mas cantada assim é uma delícia (mesmo com o Tim Maia enrolando nos versos finais):[6]

 

 

 

E o leão, onde entra na nossa historinha de hoje? Explico: Este animal está no topo da cadeia alimentar, exímio caçador, temido por todos, lindão com sua juba, tem mil motivos para se pavonear. Mas não é, de jeito nenhum, o Rei da Selva, título que desde a infância nos disseram que era dele.

 

Mentira! Ele não pode ser o Rei da Selva pela simples razão de que não vive na selva, “até porque selvas são biomas  florestais com vegetação densa e na maioria das vezes referem-se a florestas úmidas, então são justamente o tipo de habitat em que estes grandes felinos não gostariam de viver… o leão prefere áreas como as savanas, com poucas árvores e com vegetação rasteira (perfeita para a camuflagem), há até alguns bandos que vivem em regiões desérticas como as da Namíbia…”[7]

 

Pois é, fomos enganados, e a música contribuiu para este embuste[8]:

 

 

 

 

Ops, acho que temos sim uma moral da história, que é a seguinte: quando a música é boa, nem precisa fazer sentido!

 

[1] http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/infantil/pavao.htm

[2] Ednardo, “Pavão Mysteriozo” (Ednardo), in O Romance do Pavão Mysteriozo, 1974.

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pav%C3%A3o

[4] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira in Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 4ª. edição, Ed. Positivo, 2009, p.1513.

[5] Revista Superinteressante, in https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-a-diferenca-entre-sapo-ra-e-perereca

[6] Tim Maia, “A Rã” (João Donato / Caetano Veoloso) in Tim Maia Ao Vivo, 1992.

[7] https://biologiamundo.wordpress.com/2014/12/12/por-que-o-leao-e-considerado-o-rei-da-selva/

[8] The Tokens, “The Lion Sleeps Tonight” (George David Weiss/Hugo Peretti/Luigi Creatore/Lebo M) in The Lion Sleeps Tonight, 1961.