TIRE O SEU SORRISO DO CAMINHO*

TIRE O SEU SORRISO DO CAMINHO*

02/02/2019 10 Por Marcelo Pantoja

 

Escrito em 23/09/2017

 

Despedi-me hoje de um velho companheiro. Não digo amigo, pois minha timidez e sua rabugice impediram maior intimidade, mas o vínculo entre nós é inegável, há anos encontro-o no mínimo uma vez na semana, cumprimento-o à distância, aceno, trocamos olhares, nos percebemos. Quase nunca conversamos, mas hoje foi um desses raros episódios.

 

Não foi bem uma conversa, só eu falei, foram trinta segundos, se tanto. Ele se limitou a ouvir atentamente, olhando-me no olho. Só depois que nos separamos percebi, melhor dizendo, senti, que aquilo foi uma despedida. Fox, o mal-humorado vira-lata que reside no parque próximo à minha casa tem um tumor que está deformando sua boca e dificultando a alimentação, os frequentadores do parque sabem disto, algumas boas almas vêm cuidando dele.

 

Como disse, não percebi no ato que estávamos nos despedindo, esta compreensão veio minutos depois, quando me dei conta de que enquanto eu falava o Fox não tirou os olhos dos meus, e em nenhum momento sorriu, digo, abanou o rabo.

 

Bem neste momento de revelação e dor, passou por mim um grupo de adolescentes cantando-gritando um rap que ouviam no último volume saindo de um aparelho infernal de tamanho inversamente proporcional ao barulho que produzia. Enquanto eu disfarçava o choro eles pararam alguns metros à minha frente, cantando, gargalhando, sorrindo, completamente alheios ao meu drama.

 

Sorrindo.

 

Incrível como é possível, ainda que por alguns segundos, odiar profundamente pessoas que a gente nem sabe quem são. Ao passar por aquela turba foi inevitável lembrar a música do Nelson Cavaquinho, que em minha memória está sempre na voz da Elizeth, a Divina, de um disco lindo que tenho em casa[1]. Mas nenhum dos garotos tirou o sorriso do caminho para eu passar com minha dor. Ignorando-me, continuaram sorrindo e cantando e berrando seus grunhidos selvagens.

 

 

 

 

Levo uns quinze minutos do parque até em casa, o que foi suficiente para esvaziar meus instintos rapicidas, sorte dos meninos. Suficiente, também, para enxergar que naqueles trinta segundos se tanto pude dizer àquele velho companheiro, um pouco com palavras, um pouco com o olhar, que para mim ele foi sempre um cachorro nota dez, que eu sempre simpatizei com seu ar de dono do pedaço. Que eu desejo profundamente que ele não sofra nesta reta final, que ele siga em paz, e que foi muita sorte minha tê-lo conhecido.

 

 

O pequeno trajeto me permitiu, também, perceber que foi um privilégio passar aqueles trinta segundos se tanto com o Fox, afagando-o enquanto ele me olhava fixamente. E que, se é inevitável que ele vá embora, pelo menos tive a oportunidade de dizer que sua vida não foi em vão, que ele sempre me fez sorrir, e que sou grato por isto.

 

Incrivelmente, cheguei em casa sorrindo, embora de coração partido[2]. Como na música do Chaplin na improvável voz de um Eric Clapton da década de setenta[3].

 

 

 

 

 

*P.S. (01/02/2019): Este texto foi escrito em setembro/2017, assim que cheguei do Parque, de uma tacada só. Creio que hoje eu o faria um pouco diferente, menos dramático, mas resolvi publicar do jeito como foi escrito, num impulso, há mais de um ano.

Foi meu primeiro “texto com música”,  o embrião que deu origem à ideia do que um ano depois viria a ser o site Tem Música Pra Tudo.

O Fox partiu três meses depois, e nesse curto lapso ficamos muito mais íntimos. Como eu desejei naquele dia, ele partiu em paz e sem sofrer, muito graças a uma pessoa chamada Simone Pimentel, de quem me aproximei porque sempre a via cuidando do Fox – tanto que no meu celular ela até hoje é cadastrada como Simone Fox.

A ela, que me cedeu a foto aí de cima, eu agradeço por ter cuidado tão bem do Fox (junto com outras boas almas), e por ter permitido que eu participasse dos últimos meses da vidinha dele.

Resolvi publicar, mesmo depois de tanto tempo, também em homenagem ao Kojak, o cachorro da minha infância, e ao querido Juan, o elegante Yorkshire que por mais de 17 anos fez meu irmão sorrir, e que há alguns dias resolveu se juntar ao Fox.

 

[1] Elizeth Cardoso, “A Flor E O Espinho” (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Alcides Caminha) in “Coleção Folha Raízes da MPB, Vol. 11 – Nelson Cavaquinho”,  2010.

[2] Smile, though your heart is aching.

[3] Eric Clapton, “Smile” (Chaplin, Parsons, Phillips)  in “Time Pieces Vol II – Live In The Seventies”, 1983.