SEM PALAVRAS

SEM PALAVRAS

13/04/2019 6 Por Marcelo Pantoja

Escrito em 24/03/2019.

 

Já falamos neste blog, mais de uma vez, sobre como uma música, em determinadas situações, é capaz de  expressar muito mais, e melhor, algo que gostaríamos de dizer.

 

Este foi o tema do texto Fala a Música[1], mas ali demos como exemplos duas músicas (maravilhosas) com letras (maravilhosas) cantadas (por cantores maravilhosos). Nesses exemplos a mensagem, naturalmente, está na própria letra da canção.

 

Há músicas, porém, que falam, e muito, e profundamente, sem letra nenhuma. Tocam a nossa alma de forma inexplicável. Não trazem nenhuma mensagem explícita, não falam a nossa língua, não têm tradução, e no entanto expressam, ou provocam, algo que está no fundo do nosso coração.

 

Esta você certamente conhece, não sabe do quê ela fala, mas pode sentir[2]:

 

 

 

 

Apesar do título a música não fala necessariamente sobre a luz do luar, pelo menos não em sua origem.

 

É por mero acaso que ela se chama Moonlight Serenade: Glenn Miller já tinha gravado, para o “lado A” de seu próximo compacto, uma música chamada Sunrise Serenade[3], que pode ser traduzida como Serenata do Sol Nascente. E foi só para “combinar” com o “lado A” que a música do “lado B”, que você acabou de ouvir, foi chamada de Moonlight Serenade, Serenata da Luz do Luar.

 

Portanto, se você ouve esta música e pensa no luar, é só porque foi sugestionado(a) pelo título. Foi bem depois de a música instrumental ser lançada naquele compacto de 1939 que se criou uma letra para ela (de Mitchell Parish) falando de lua.

 

E foi assim, sem letra, que ela se tornou um sucesso sem precedentes, causando muita inveja no pessoal do Jazz daquela época, que costumava desprezar Glenn Miller por considerá-lo muito comercial!

 

Se tornou, também, uma música universal, como vimos há pouco com os japinhas tocando e você, que não entende nada de japonês, achando lindo.

 

Tornar-se universal, acho que esta é a principal característica das músicas sem letra que tocam o nosso coração. Só isto explica como um tango argentino[4] tocou fundo na alma dos russos que nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 assistiram a apresentação da coreana Yuna Kim em Sóchi:

 

[perdoe o incômodo: em algumas localidades este vídeo só pode ser assistido no youtube, se for o seu caso por favor clique no vídeo e em seguida em “Assistir no Youtube” deleite-se e depois volte para cá, você não vai se arrepender!]

 

 

 

Astor Piazzolla compôs Adiós Nonino logo após o falecimento de seu pai, que na família era chamado de Nonino (vovozinho).

 

Um admirador afirmou que percebe na música para o pai morto todas as etapas descritas na psicologia: a negação, a ira, a profunda tristeza e depois a resignação com o adeus forçado. Pode até ser, mas provavelmente não era nada disto que passava pela cabeça da patinadora quando escolheu este tesouro argentino para a sua performance.

 

Para mim é este o grande prazer da música sem letra: independentemente do que o compositor quis dizer, para cada um que ouve ela pode ter um significado diferente e único. Ou significado nenhum, apenas uma sensação, um frio na barriga, uma emoção sem tradução.

 

Esta descrição só não serve para o Trenzinho do Caipira do nosso maestro Heitor Villa-Lobos. Neste caso, mesmo querendo, o ouvinte não consegue deixar de se ver embarcando no trem e fazendo uma viagem deliciosa até o seu destino – exatamente como o compositor quis que nos sentíssemos[5]:

 

 

 

 

P.S.: A exemplo de Moonlight Serenade, as outras músicas citadas neste texto depois de algum tempo também ganharam letras muito bonitas. Mas (para mim) nada se compara ao prazer de simplesmente senti-las, em vez de compreendê-las.

 

 

[1] Publicado em 02/11/2018: https://temmusicapratudo.com.br/2018/11/02/fala-a-musica/

[2] Glenn Miller Orchestra, “Moonlight Serenade” (Glenn Miller), in Coleção Folha Lendas do Jazz Vol. 07, 2017.

[3] Glenn Miller Orchestra, “Sunrise Serenade” (Frankie Carle / Jack Lawrence),  in Coleção Folha Lendas do Jazz Vol. 07, 2017.

[4] Astor Piazzolla, “Adiós Nonino” (Astor Piazzolla), in Itinerary of a Genius, 2002.

[5] Família Lima (part.  Xororó), “O Trenzinho do Caipira” (Heitor Villa-Lobos), in Família Lima 20 Anos, 2015.