LEGAL E O REI

LEGAL E O REI

21/10/2018 18 Por Marcelo Pantoja

Escrito em 17/10/2018

 

Quem segue este blog e leu o post Sister Morphine[1] sabe que eu andei tendo uns probleminhas de mobilidade, e por conta disso fiquei umas três semanas sem ir ao meu parque predileto, aqui perto de casa.

 

Isto para mim é um grande castigo, pois correr, andar ou simplesmente estar no parque é um dos meus melhores programas, que tenho repetido duas ou três vezes por semana nos últimos, sei lá, doze anos talvez.

 

Há mais de dez anos reina nesse parque um vira-lata chamado “Legal”. É o bonitão da foto aí de cima.

 

É preciso dizer que o Legal – que ele não nos ouça – não faz jus ao nome. Ele é bem temperamental, há dias em que é todo dócil, mas tem vezes que chego cheio de sorrisos e gracinhas para cumprimentá-lo e o safado não  dá a mínima, me deixa falando sozinho com cara de tacho.

 

Nenhum outro cachorro pode morar no parque sem o aval do Legal (Fox, um outro personagem de quem falarei em breve, é um dos poucos que desfrutou deste privilégio). O Legal é, enfim, o reizinho do parque e, como qualquer monarca que se preze, tem um humor bastante instável.

 

Perdoe o longo introito, que foi necessário para você compreender o novelão mexicano que a partir deste ponto passo a narrar:

 

Três semanas de ausência, volto ao parque capengando, morrendo de saudades do Legal. Demoro uma vida para subir a ladeira e alcançar o local onde fica a casinha do Legal, e a cada passo de tartaruga que dou as minhas convicções vão derretendo um pouco. Feito um adolescente que passou as férias longe da namoradinha, vou subindo e me perguntando: Será que ele ainda gosta de mim? Será que me esqueceu? Será que vai me ignorar? Como será que ele está? Será que ele ainda está lá?

 

Eis que, quando desponto no alto da ladeira, a uma distância de uns 50 metros avisto o Legal sentado, fiscalizando o seu reino. Senti até um frio na barriga (não ria). E não é que o danado, ao me ver, levanta as orelhas, fica em pé, hesita por uns segundos, começa a abanar o rabo e vem correndo ao meu encontro!

 

Como se fosse um filhote, e não um senhor já de certa idade, faz a maior festa, pula em cima de mim, é todo sorriso, brincadeira e alegria!

 

Você sabe, tem música pra tudo, e tem inclusive música para um cara que volta e é recebido por seu velho cão que lhe sorri latindo (preste atenção no segundo verso):

 

 

 

Achou piegas a cena do meu reencontro com o Legal? Com certeza! Só faltou a câmera lenta! Mas para mim foi legal pra caramba.

 

O Portão, mais conhecida como a música do Eu Voltei, é de 1974, composta pelo Rei e seu parceiro de sempre Erasmo Carlos[2]. Me pergunto qual dos dois criou a frase lapidar – meu cachorro me sorriu latiiiindo... Genial.

 

Poucas pessoas admitem publicamente que gostam do Rei; só mães e tias confessam que amam Roberto Carlos. Mas todo mundo canta as músicas dele. Até a Blitz! E olha só como ficou Legal (Au-Au)![3]

 

 

 

 

Queiram ou não, Roberto Carlos exerce um enorme fascínio, magia mesmo, não apenas sobre nós, pobres mortais, mas também sobre os maiores figurões da MPB. Vejam o que Caetano Veloso narra em seu livro, falando sobre a época em que estava exilado em Londres no início dos anos setenta:

 

“Uma visita comovente foi a que nos fez o Rei Roberto Carlos. De passagem por Londres, quis nos ver. Ao atender seu telefonema para marcar a visita, Rosa Maria Dias não acreditou que fosse verdade e, ao render-se à evidência, chorou… Conversando sobre a gravação de seu novo disco, Roberto pegou meu violão e cantou – dizendo, sem nenhuma insegurança, que iria nos agradar – ‘As curvas da estrada de Santos’. Essa canção extraordinária, cantada daquele jeito por Roberto, sozinho ao violão, na situação em que nos encontrávamos, foi algo avassalador para mim. Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição que me afastasse dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido preto de Nice, enquanto Roberto repetia com ternura: ‘Bobo, bobo’”[4]

 

Resultado dessa noite memorável: voltando ao Brasil, um comovido Roberto compôs com Erasmo Carlos, em homenagem a Caetano Veloso, a música sobre um cara cujos pés um dia voltariam a tocar a areia branca. Veja e ouça, na voz do próprio homenageado[5]:

 

 

 

 

Você pode não ser tia nem mãe de ninguém, mas aposto que cantou junto, né?

 

Só agora me ocorreu que Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos também é uma canção sobre um cara que volta ao seu lugar de origem e se reencontra depois de um longo sofrimento.

 

Comovente.

 

Nada que se compare, é claro, à minha cena com o Legal.

 

[1] Publicado em 30/09/2018.

[2] Roberto Carlos, “O Portão” (Roberto Carlos, Erasmo Carlos) in “Roberto Carlos”, 1974.

[3] Blitz, “Sentado à Beira do Caminho” (Roberto Carlos, Erasmo Carlos) in “Rei”, 1994.

[4] Caetano Veloso in “Verdade Tropical”, p.424, Companhia das Letras, 1997.

[5] Caetano Veloso, “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” (Roberto Carlos, Erasmo Carlos) in “Circuladô Ao Vivo”, 1992.