MÚSICA OU POESIA?
Escrito em 04/06/2022.
Você já leu um livro de poesias? Eu nunca consegui. No entanto, sou vidrado em letras de músicas – que, no meu entender, também são poesias.
Dificilmente me interessaria por um texto iniciado com a frase “Minh’alma de sonhar-te anda perdida”.
Já uma música dessas a gente tem vontade de ouvir até o final:[1]
Pois é, esta música que você acabou de ouvir é, de cabo a rabo, a íntegra de um poema de Florbela Espanca, poeta portuguesa que morreu (se suicidou!) em 1930, muito antes do Fagner nascer (1949).
O Fagner só musicou o poema. “Só” é uma sacanagem da minha parte, ele fez uma BAITA música que, se não existisse, eu jamais teria conhecido a poesia de Florbela Espanca.
Se você era um jovem no final da década de 1980, em algum momento provavelmente se esgoelou gritando: “Ainda que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seriaaaaa…”.
E se alguém que não conhecesse a música da Legião Urbana visse você de olhos vidrados, gritando esses versos, poderia confundi-lo com um pastor desses que alugam horários na televisão pregando para o seu rebanho. Afinal, esses versos não são do Renato Russo, são de alguém um tantinho mais velho: essas palavras são atribuídas a São Paulo (que na época atendia por Saulo), dirigidas aos Coríntios (não, não estamos falando de futebol), e estão na Bíblia, mais especificamente no Novo Testamento.[2]
A mesma música prossegue dizendo: “O amor é o fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer”. Outra frase que dificilmente prenderia minha atenção, não fosse dita (cantada) desta maneira:[3]
Se a primeira parte da música foi chupada da Bíblia, a segunda parte é reprodução “ipsis litteris” do soneto de Luís Vaz de Camões, o poeta português falecido em 1580. Espertinho o Renato Russo, emplacou um tremendo sucesso e não precisou pagar royalties nem para São Paulo nem para o Camões![4]
Outro que pegou uma poesia que já existia há muitos anos e transformou em música foi o canadense Leonard Cohen. Ele próprio um grande poeta, traduziu para o inglês o poema “Pequeño Vals Vienés“ do espanhol Frederico Garcia Lorca, falecido (assassinado!) em 1936.
O Cohen batizou sua versão de “Take This Waltz”. Mesmo sabendo um pouco de inglês, nunca entendi a letra meio doida e sem sentido, o que não é de espantar, pois segundo Ariano Suassuna poesia é “uma linguagem com predominância da imagem e da metáfora sobre a precisão e a clareza”.[5]
Pouco importa que seja meio sem pé nem cabeça, a música é deliciosa. A parte que eu mais gosto é a do “Ay, Ay-Ay-Ay”. Fui pesquisar, e não é que no original espanhol também consta o ay,ay-ay-ay?[6]
Pegue esta valsa, garanto que você vai gostar:[7]
[1] Fagner, “Fanatismo” (Fagner, Florebela Espanca) in Raimundo Fagner Ao Vivo Disco 2, 2000.
[2] 1 Coríntios 13:1-2
[3] Legião Urbana, “Monte Castelo” (Renato Russo, Luís de Camões + trecho do Novo Testamento) in As Quatro Estações, 1989).
[4] Lei 9610/98: “Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.”
[5] SUASSUNA, Ariano (2012). Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympio, citado em https://pt.wikipedia.org/wiki/Poesia
[6] Veja em https://www.poemas-del-alma.com/pequeno-vals-vienes.htm
[7] Leonard Cohen, “Take This Waltz” (L.Cohen/ Garcia Lorca) in The Essential Leonard Cohen, 2002.
Músicas maravilhosas !
Música é poesia !
Muito bom ouvir Fagner!
Renato Russo se inspirou num passado muito distante , porém ensinamentos eternos.
A última é confusa mas a música linda!
Parabéns!!
Sensacional !!!
Nada Melhor do que Conhecer essas Poesias…
Da Melhor maneira possível, Ouvindo Música !!!
Parabéns !!!
Fantastico Fagner e Florbela!
Na poesia, as palavras não são palavras e deixam de expressar aquilo que expressavam, passando a dizer outras coisas, até se dissociarem completamente da do tangível pela mente, como os poemas Zen. Mas algumas são contundentemente diretas e fortes como essa ( https://youtu.be/DwVc0G3IKU4 ) dos anos 50 que virou música com os Secos e Molhados.
Grande abraço e gratidão por trazer “Fanatismo”.
Namastê🙏🏼
Acordar no dia dos namorados ouvindo poesia foi demais.
Sim, só vi hoje, mas acho que foi uma boa conspiração do universo…❤️❤️
Beijo grande!