PERDAS E DANOS
Escrito em 26/10/2019.
Sim, sou apegado aos meus discos – o que pode soar estranho no tempo em que as músicas estão na nuvem, no Spotify ou coisa que o valha, e os artistas nem lançam álbuns, lançam faixas.
Houve um tempo, crianças, em que as músicas vinham gravadas em uma coisa redonda chamada CD e, antes disto, em LPs. É destes que estou falando, e é com dor no coração que me lembro de algumas perdas irreparáveis.
Como, por exemplo, quando o cachorro de um amigo chamado Marshall (o cachorro, não o amigo) literalmente comeu a capa do meu disco da Janis Joplin. Pois é, emprestei o LP em perfeitas condições, e ele me foi devolvido em uma capa inteirinha preta, toda torta, feita de cartolina pelo dono do Marshall!
Neste caso a perda foi “só” da capa. Muito pior foi quando meu amigo Bóris, que bem antes dos 18 anos já achava que era piloto, capotou a Brasília branca do pai dele. O carro ficou destruído, mas o Bóris só teve algumas escoriações. Ainda assim o acidente foi trágico, com duas vítimas fatais que estavam no banco de trás: o meu LP do Genesis (aquele amarelo, de 1983, que tem “Mama”) e o maravilhoso e histórico disco Alucinação, do Belchior.
Este disco é mesmo histórico porque tem, entre outras pérolas, “Apenas um Rapaz Latino Americano”, “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” (sendo as duas últimas sucessos estrondosos na voz da Elis Regina).
E traz também a comovente, dolorosa e lancinante “Fotografia 3×4”, contando as aflições do “jovem que desce do norte”.
Só um poeta da estatura de Belchior seria capaz de fazer com que eu, paulista nascido em cidade grande, que nunca passei frio (senão quando esquecia a blusa), pudesse mergulhar na música a ponto de acreditar quando ele diz que “minha história é igual a sua” e que “eu sou como você que me ouve agora”. Poesia pura:[1]
No mesmo dia do acidente o Bóris apareceu à noite com um braço enfaixado, contando, meio que orgulhoso, a besteira que fez. Quando, rindo(!), me deu a notícia sobre os discos, foi preciso que me segurassem para eu não fazer com ele aquilo que o capotamento não conseguiu.
O Bóris jamais me indenizou, precisei eu mesmo recomprar os dois discos, anos depois e já no formato CD. Este amigo, aliás, despreza os almoços em que nosso seletíssimo e pequeníssimo grupo se reúne de vez em quando. Ele não acompanha meu blog, provavelmente jamais lerá este texto. Ele é, enfim, um desastre.
No entanto, quando (raramente) nos encontramos, a alegria é a mesma de sempre, o abraço é o mesmo, a conversa parece ser continuação de ontem. Como só acontece entre amigos de verdade, mesmo os de péssima qualidade, como são os meus.
Amor, completo e imperfeito.[2]
Bóris, além de apelido do meu amigo, é também o nome da aranha mais famosa do rock’n roll.[3]
[1] Belchior, “Fotografia 3×4” (Belchior) in Alucinação, 1976.
[2] Barão Vermelho, “Meus Bons Amigos” (Guto Goffi/Maurício Barros/Fernando Magalhães) in Balada MTV, 1999.
[3] The Who, “Boris the Spider” (John Entwistle) in A Quick One, 1966.
Advogado e amante de boa música.
9 comentários
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Pan,
Adorei seu texto!
Não sei se me sinto lisonjeado, homenageado ou envergonhado!!
O que resta de nós, senão as experiências, memórias e os “causos” que levamos pela vida, muitas vezes valem mais do que os bens materiais, terrenos, afinal em tempos modernos, onde podemos simplesmente ouvir ao invés de ter…esta pode ser a nossa missão de desprendimento das coisas, e termos somente na memória…ou na nuvem….Colou?
Quanto aos amigos, estes sim valem os esforços, independentes da qualidade ou reputação, pois são de verdade.
Nota 1: Ao que me lembro, o capotamento da FIAT ELBA foi cruzando, subindo a Rua da Consolação e não na Av. Paulista (também estava lá!)
Nota 2: Próximo encontro do seleto grupo, estarei lá…ainda neste ano.
Nota 3: Relembrar Belchior foi demais!
Beijos..
Belão..
Mais uma vez sem novidades … você conseguiu ser brilhante .
Belchior x Boris & Spider X capotamentos e etc
É como diz a canção .”.nunca entendi muito bem os casos de dinheiro e de família” , mas se um dia vieres a entender .. podes ter a certeza que estarás enganado .
Lembrei de um capotamento na tortuosa Av. Paulista … um FIAT ELBA … modelo Collor de Mello ,
Nosso seleto grupo continuará os encontros apesar de nossas vidas serem iguais , só que diferentes .
Amigos só os de excelente qualidade e reputação ilibada…..
As pessoas não mudam …..
beijos
boris the spider foi demais .
Adorei ouvir Belchior!
Creio que somos apegados ás nossas coisa porque esquecemos que um dia ficaram , mas enquanto aqui estivermos vamos viver cada momento cuidando de tudo que nos da prazer.
Show de Musica !!! Que Bom Gosto… Janis Joplin, Genesis, Barão Vermelho, The Who e Belchior que é Tudo de Bom !!!
Nada mais libertador do que ter as coisas sem estabelecer com elas uma relação de posse.
Me fez lembrar uma estória árabe.
Mulá Nasruddin tinha uma mula. Adorava e era muito feliz com ela.
Um belo dia Nasruddin perdeu a mula e ficou inconsolável. Não havia palavras ou conselhos dos amigos que o fizessem recuperar a alegria perdida.
Um belo dia, um homem encontrou a mula e a devolveu. Nasruddin ficou exultante. Ficou tão feliz… mas tão feliz… mas tão feliz…. que deu a mula para o homem que a encontrou, como agradecimento. Até que um amigo o interpelou sobre o porquê de ele ter feito tal coisa, pois aquilo era um contra-senso. Ao que, Nasruddin respondeu: “É, Mas… e a alegria de reencontrar um objeto perdido?”
E nunca mais ele perdeu a mula.
Grande abraço. 🙏🏼
Ótimo ouvir e recordar o Belchior e parabéns por conseguir transformar as perdas e danos ao longo da vida. Acredito que as pessoas mais felizes são as que desenvolvem a capacidade de reparar as perdas e os danos sofridos.
Que bom poder relembrar um fato desagradável e transformá-lo numa Linda homenagem ao Querido Bóris!
Você sempre surpreendendo com seu Amor e Sensibilidade! Parabéns!!!❤️
Adorei o vídeo da aranha!
Nada mais libertador do que ter as coisas sem estabelecer com elas uma relação de posse.
Me fez lembrar uma estória árabe.
Mulá Nasruddin tinha uma mula. Adorava e era muito feliz com ela.
Um belo dia Nasruddin perdeu a mula e ficou inconsolável. Não havia palavras ou conselhos dos amigos que o fizessem recuperar a alegria perdida.
Um belo dia, um homem encontrou a mula e a devolveu. Nasruddin ficou exultante. Ficou tão feliz… mas tão feliz… mas tão feliz…. que deu a mula para o homem que a encontrou, como agradecimento. Até que um amigo o interpelou sobre o porquê de ele ter feito tal coisa, pois aquilo era um contra-senso. Ao que, Nasruddin respondeu: “É, Mas… e a alegria de reencontrar um objeto perdido?”
E nunca mais ele perdeu a mula.
Grande abraço. 🙏🏼
Pan, que texto maravilhoso, que divino ouvir o Belchior e que imensa saudades!